“Vim buscar a chave do Banco do Brasil”, comunicava a mulher negra e miserável que aparecia de vez em quando na minha casa em Taquaritinga.
Eu tinha menos de 10 anos e era filho do prefeito. Ela tinha pouco mais de 40 e decidira que era filha de Getúlio Vargas, de quem havia herdado o banco estatal.
Só fiquei intrigado na primeira visita. Nas seguintes, até tentei esticar a conversa com a doce maluca antes de fazer o que minha mãe ordenara: devia recomendar-lhe que resolvesse o problema com meu irmão mais velho, funcionário da agência local.
Pacientemente, Flávio explicava que não podia entregar a chave sem conferir a certidão de nascimento. A órfã do presidente prometia buscá-la no cartório. Três ou quatro meses mais tarde, lá estava ela no portão para a reprise do ritual.
Lembrei-me da doida mansa com quem contracenei na infância ao saber que o presidente Lula registrou em cartório um Brasil imaginário. É uma Pasargada retocada pelo traço de Oscar Niemeyer. Tem trem-bala, aviões pontuais como a rainha da Inglaterra, rodovias federais de humilhar alemão, casa e luz para todos, três refeições por dia para a nova classe média, formada pelos pobres de antigamente. Quem quiser ver mendigo de perto deve voar até Paris e sair à caça de algum clochard. A transposição das águas do São Francisco erradicou a seca e transformou o Nordeste numa formidável constelação de lagos, represas e piscinas. Os morros do Rio vivem em paz e quem mora nas favelas do Alemão não troca o barraco por nenhum apartamento de cobertura no Leblon.
No país do cartório, o governo não rouba nem deixa roubar, o mensalão é coisa de Fernando Henrique Cardoso, os delinquentes engravatados foram presos pela Polícia Federal, os ministros são honestos, os parlamentares servem à nação em tempo integral e o presidente da República cumpre e manda cumprir cada um dos Dez Mandamentos.
Lula fez em oito anos o que os demais governantes não fizeram em 500. A superexecutiva Dilma Rousseff precisa acautelar-se para não exagerar na eficiência: se melhorar, estraga.
Daqui a alguns anos, é possível que um filho do prefeito de São Bernardo do Campo tenha de lidar com um homem gordo, de barba grisalha, voz roufenha e o olhar brilhante dos doidos de pedra, querendo que a paisagem real seja substituída pela maravilha registrada no cartório.
A cobrança da filha de Getúlio tropeçava na falta da certidão de nascimento que o pai do novo Brasil acaba de providenciar.
Depois de repetir que governou a República, ele vai reclamar o que lhe pertence sobraçando um calhamaço cheio de selos, carimbos, rubricas e assinaturas.
“Nada é impossível neste país”, deu de repetir Lula ultimamente. Nada mesmo. É possível até um ex-presidente acabar trepado num caixote, na praça principal de São Bernardo, exigindo aos berros a existência de um Brasil que inventou.
Publicado em: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/
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sábado, 18 de dezembro de 2010
A mulher que se achava filha de Getúlio e o homem que se acha pai do Brasil Maravilha
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